Acontece que quando se é noite não importa o quanto se amanheça, desperto debaixo do sol e caio do sonho anoitecendo os olhos de quem queira ver. Porque é justo e necessário que amanhecer seja isso, dormir ao contrário numa realidade inexistente, descansar entre os cílios do mundo que no abrir e fechar sublime te mordiscam e te arrancam as melhores partes. Que toda manhã seja noite, olhos miúdos que pouco dizem sobre o que são, bocas falsas que desejam o bom sem conhecê-lo, pernas curvadas que se alinham na correria que atropela a vida, amanhecer é noite perdida, é saltar do topo pra dentro de um vazio que nos enche, não amanheça jamais, seja noite, ainda que dia.

Frederico Brison.
E ao questionar-me sobre o porque escrevo, inquieto-me pela falta de respostas. E tal fenecimento não é nem ao menos ruim, sendo algo assim, ainda poderia-se dizer que sirvo pra alguma coisa, mesmo que não seja bom. Corro toda noite pra ver a madrugada, corro de mim mesmo, do sono que me adormece enquanto há Sol no céu. O tornar-se claro jamais espera, o escuro é calmo, é paralítico, cego, mudo, a noite é uma criança prematura que o Olimpo aborta do alto antes que amadureça, e de cima despenca pros olhos que contam estrelas, ali morre a noite. O anoitecer é uma morte lenta, venenosa, daquelas em que se aproveitam os últimos suspiros, em que se tecem as últimas palavras, daquelas que nos dá tempo de pedir perdão a Deus ou a qualquer outro bastardo. Amanhecer, não. Amanhecer é bala perdida, é carne cortada, massacre, sangue, é faca certeira no coração. O nascer do Sol mata o tempo, toda gente vive rápido na morte do dia, pra morrer com calma na vida da noite. E é no madrugar que eu morro, faleço em questões memorizadas, me liberto de tudo o que eu deveria ter dito, do calar que me comeu, escrevo! Porque se eu não fizesse isso, não faria mais nada.

Frederico Brison.

AQUELE SOBRE O AMOR, A VIDA E A MORTE.

É preciso ter buracos para serem preenchidos, a vida é feita disso, é um grande cemitério de covas abertas no peito de cada um, e nós somos os cadáveres do mundo, prontos e sempre dispostos a sermos enterrados nos peitos dos outros.

É preciso que estejamos vazios.
Desocupados.
Tanto pra morrer, quanto pra enterrar.

O amor é morte.

Os dois morrem para que se enterrem um no outro,
e se decomponham até que a carne se desfaça,
pra que tudo se perca, restando no fim do que nunca foi começo,
dois corações entupidos da terra que fecha o túmulo, que germina o amor e faz brotar a eternidade.

Frederico Brison.

ESTUDO SOBRE A FALÊNCIA DO ESCRITOR

escrever é religião, é seita que se aceita na crença da doutrina de um que doa seus dedos para serem apossados por demônios vocábulos, sempre prontos a te gritar poemas e contos inspirados pela fé que se devota aos santos versados matutinos. eu perdi os lábios pra rezar, deixei de ir pra missa, não cumpri meus votos, descumpri promessas, apaguei a vela, chutei a santa, cuspi na cruz. de tanto falar, fali. e se esvaíram também as palavras, que sem mim, não se manifestam para dar consulta aos olhos que gulosos, enchiam a boca. se sou fome, culpe aos outros, que devoraram ferozmente tudo o que tinha pra comer. sobraram-me dez dedos desnutridos, que de tão abatidos tropeçam nessas últimas palavras, se arrastam lânguidos tentando alongar as frases, florear o caminho que os levarão a solitude.

Frederico Brison.

DEZ MIL NOITES PASSADAS

de repente quando se fez noite como em todo fim de dia faz,
para que os olhos dos homens bons se assemelhem aos dos homens maus,
e a escória mendicante se leiloem ao domínio de satanás 
em troca de vida farta e bocetas pros seus paus.
fazia-se junto a noite e da penumbra que dela provinha,
os desejos carnais que em mim ascendiam,
trepavam em meu raciocínio e ensurdeciam a razão.
das vontades nasceram as ruas,
os transeuntes e os bares da minha cidade,
é na vontade que tudo nasce,
construir exige querência,
a destruição sim, é involuntária e silenciosa,
se faz sozinha e quando dar-se conta o que nasceu em vontade já tonou-se inexistente.
eu caminhava em passos curtos e retos como sempre faço,
passava por becos escuros com a certeza de ser invisível,
e por querer, era.
os passos detrás pela culpa de terem sido por pura ganância da minha alma de querer que fossem,
redimiam-se prostrados a querubins e desfaziam-se em penitência aos meus pecados,
olhando o caminho que já havia sido passado, nada se via,
não era por causa do escuro da noite, e sim pela ausência de ser,
tudo é enquanto é, depois de ser deixa de estar e passa a passado quando menos se espera.
eu ainda era porque nascia prematuro em cada pisar novo,
e ia morrendo, deixando partes minhas soltas em cada canto do mundo.
ia em destino aos amores que viriam,
às pessoas que seriam avistadas,
habitantes de seus próprios atalhos, que se por sorte não fossem desfeitos pelo tempo,
se cruzariam com os meus, tornando-os férteis de novos destinos.
o homem veio retilíneo,
seguia-me de frente,
propositado a atravessar-me sexos e vidas,
chalaceava em sorriso os trejeitos que eu tinha.
dedilhar o vento, estalar os dedos três vezes por minuto, esquecia que já o tinha feito.
eu descia o olhar,
descia tão baixo a ponto de fecha-los sem propósito,
ocultar a mim mesmo minha própria visão parecia-me melhor que encará-lo.
a esperança de o ter durante o eterno,
diminuía junto a distância que acrescia no tempo que tudo validava.
próximos e estáticos burlava-se o tempo,
confundíamos deuses e demônios,
que espectadores invejosos dos prazeres humanos,
perdiam a hora em seus onanismos precoces cheios de gozo.
éramos amantes divinos,
pornô onipotente de nossos senhores,
fodidos e mal pagos,
satisfeitos somente pelo fato de sermos.
e na ânsia de sermos mais,
íamos da estatização à correria num ímpeto,
idealistas e pensantes, crentes fiéis das mentiras absolutas,
confiantes que de mais perto, compartilhando corpo e alma,
em cópula infindável de júbilo perene, seríamos eternos.
e na ganância de sermos mais,
caminhou-se escrupulosamente,
e no rumos que nos traria, nos perdemos.
andou-se demais, passamos de nós.
olhando pra trás nada se via, e não era por causa do escuro da noite.
apodrecemos em inexistência, já era dia amanhecido.

Frederico Brison.

DO ACIDENTE À POESIA

aos resquícios das almas dos homens que foram,
às mentiras contadas e aos olhos abertos,
às línguas ocultas nas bocas caladas,
às mentes fechadas e às verdades incertas.

aos amantes secretos e aos segredos descrentes,
aos papas, aos padres e a todos os crentes,
às putas, às santas e aos delinquentes,
a todos que vivem no meio da gente.

aos internos, ao materno e ao patriarcado,
aos deuses, aos santos, e aos desesperados,
a tudo que é livre ou que está condenado,
a todo demônio que incita o pecado.

aos pedestres, pedintes e aos motoristas,
aos mendigos, aos ricos e aos comunistas,
aos machistas, aos bandidos e aos exorcistas,
aos viados, artistas, e aos trapezistas,
aos fascistas, aos tristes, e aos anarquistas,
à escoria, às histórias, e aos otimistas.

ao budismo, islamismo, evangelismo e aos demais,
aos ateus, aos católicos e até à satanás,
para os céus, para o purgo e para o inferno,
para o ontem, o hoje, o amanhã e o eterno.

às crianças, ao aborto e ao coito animal,
aos fetos, às gravidas e ao cerne carnal,
ao choro, ao gozo, aos gemidos de vida,
ao éter, à morte e ao homicida.

aos heróis, aos leigos e aos psicopatas,
a tudo que é lei, e a todo autocrata,
ao exílio, ao martírio e à revolução,
a todo bastardo com o cu mão.

às virgens, aos sãos, aos loucos e aos maconheiros,
aos acrobatas, aos piratas e aos traiçoeiros,
a todos os contos e a todas as prosas,
a todos os versos e a todas as horas.

a tudo que é dito e ao que se escreve,
a tudo que é lido e que se esquece,
a todo escritor e a todo leitor,
ao livro fechado e ao início da dor.

a todos citados, um pouco de amor.

Frederico Brison.

MICRO-TEXTO I

Eu tinha um nome, mas isso faz tempo. Hoje tenho vários, um pra cada um, um pra cada eu, pra cada outro que aparece. Cada pessoa tem um modo preferido de nomenclaturar, depende de quem estarei sendo e com quem estarei. Com o tempo aprendi a ser mutável, com o tempo aprendi que com o tempo nada se aprende, nada se supera, só se perde o tempo que se perdeu esperando algo mudar. Você senta, pensa, ouve o tiquetaquear do relógio e pronto, perdeu! Nada mudou, ninguém voltou, nenhuma porta abriu, mas o eco dela se fechando, batendo estrondosamente, ainda está por aí. É assim que eu estou, ecoando e perdido. Tipo a porta. Tipo o tempo.

Frederico Brison.

DIÁLOGO DIACRÔNICO I

- Você consegue escrever o que não sente?

- Moça, falo de muitos outros fingindo falar de mim, sou mais observador do que escritor. É claro, já tive e mantenho tendo minhas angústias, essas transcrevo com maior desenvoltura. O que pesa na verdade é quem deixei de ser, perceba e saiba que não sou quem aparento, esse nem mesmo é o meu nome. Sou autor, sou ator, construí esse personagem e criei a ele amores e dores, portanto não se trata de viver o que não sinto e sim viver do que imaginei e criei para sentir.

Frederico Brison.

ÓSCULO

A boca suja,
que beija com olhos de meias verdades,
cheios de vaidades inteiras.
Compromete a elucidação das palavras
que me acariciam fases e faces
rubras e evanescidas.
Que esconde carreiras de dentes manchados,
num sorriso contrastado e ocultado
por um par de lábios negros e maduros,
que por estarem fechados para os que de fora o desejam,
encontram-se abertos para os que desejados intimamente por mim,
se deitem no oco do eco da boca e cubram-se de língua
e juras caladas, que jamais ousariam ser pronúncia,
por temor de serem abatidas por tuas mordidas,
que arrancam pedaços de vidas e de amores,
antes que se possa viver ou amar.
A boca limpa,
que beija e cala, sorri e mata,
que fecha e fala, assopra e morre,
silenciosa e vazia.

Frederico Brison.

DEUS


Antes que pudesse ser amor,
fora qualquer outro sentimento além.
Isso se houver neste canto onde vivemos
algo que possa superá-lo,
e se houver a existência desse, ou de outro.
Jamais obtive coragem
para mostrar a nenhum outro ser
habitante do mundo,
as chagas que carrego junto a mim.
Minha alma é doente, é faltante.
É submissa aos martírios banais
de uma matéria sádica,
que não supre às necessidades
primordiais do espírito.
Ah, sempre fostes o único capaz
de livrar-me a alma das dores de sua doença,
distraías tão bem a minha carne
que ela não percebia quando a alma fugia
pra um mundo melhor.
Tu eras capaz de nos tornar um, correspondentes.
Nos dominava e fazia de nós santificados.
A trindade mais pura que pudesse haver.
Corpo, alma e espírito, santos.
Dentro de nós, curava-nos.
Afastava as mazelas.
E se porventura foste mais fundo,
na cavidade obscura que era a ponte entre um estado e outro,
tornava-se soberano.
Tua onipotência me enchia de graças,
expulsava o diabo que fazia-me hospedeiro,
libertava meus demônios,
cicatrizava meus estigmas.
Dentro de mim ergui altares e louvores a ti,
enfeitei-me com velas para que não houvesse
lado interior que não conhecesse,
rezei teu terço de olhos fechados,
boca entreaberta, e suspiro ofegante,
e mais rápido que qualquer outra divindade,
tu me atendestes, estendendo o teu corpo por cima do meu.
Tornaste-te, então, a minha religião.
O meu homem.
O meu deus.


Frederico Brison.

ALMA PENADA


não conheces o som do sopro da alma,
muda o silêncio versando emudecida,
salta do corpo trajando farrapos,
se oferece em agalma pros deuses da vida.

cai no vazio da boca pra fora,
penhora a matéria em troca de luz,
sustenta imperícia em sua alforria,
calada, cansada, pregada na cruz.

prematura transparência imaculada,
transitante de rumo perdido,
volta pro corpo, alma penada,
volta quietinha, feito bandido.

pula-me os muros do corpo gelado,
que perdeu sua crença de ser infinito,
e no meio das flores sendo velado,
me tire da morte, solte seu grito.


Frederico Brison.

MADRUGADA DOS MORTOS


da janela
avisto
o prenúncio
da tua chegada.
alma clara,
habitante
da sombra
da rua.
cópula
dos segredos
de dois
amantes condenados
pelo desejo carnal.
simbiose nauseante,
que martiriza
o sagrado sacrifício,
de um que rala
os joelhos no chão
e apoia as palmas
nas coxas
do outro,
que lança fora
a vocalização
do seu prazer.
quantas vezes
é possível
morrer uma vida?
sepulta-me
entre as pernas,
na cova
que cavastes tão bem.
me deixe flores,
e jamais esqueça
de em morte
manter-me regado,
como fez em vida.
desejo estar
pra eternidade,
úmido
pela santificação
da sua erótica humanidade.


Frederico Brison.

RECORTE


O amor quando chega tro
Veja a menina sentada, des
Preocupada com a dor e com a vi
Dá pra ser certo no meio de tanta lou
Cura as feridas que sangram e machu
Caminhando, deixemos pra trás to
Dos os amores que eu a
Creditei em ti minhas convicções e em tro
Cá estou perdido novamente, lasti
Mando que fiques e tu vais em
Bora pro Sul? Começar de no
Volta pra mim, é só o que peço, por
Favor.


Frederico Brison.

AFOGADO


te prendi dentro das minhas olheiras,
lacrimejei e te afoguei.
não arrependi,
o motivo das lágrimas era você.
meus olhos deitaram em ti,
e morreram pra realidade.
nascem de novo, todos os dias.
é involuntário, eles se abrem como se fecham,
cansados, hora do mundo, hora do sonho.
de uma ilusão paralela que fere minhas pálpebras.
atravesso mil desejos
que escorrem pelo rosto quando pisco,
insisto nisso, nasci pra morrer a cada sono,
e renascer a cada súbita vontade que despenca em mim.
vontade de te sonhar, de olhos abertos dessa vez.


Frederico Brison.

SEMIDEUS


deus veio pela metade!
você chegou meio manco,
meio ferido,
meio bandido,
meio o que costuma ser.
tua mania divina
de fazer-me ventricular anormalmente,
manualmente,
quase que bombeando a dedos
o nosso meio coração.
e tuas unhas lascadas arranhavam-me as artérias
e faziam cócegas suaves em cada célula,
que percorriam-me em gargalhadas.
gostava do jeito que você tirava de mim as vírgulas,
e da forma artesanal que fazia delas lindos espirais
abstratos.]
de quando íamos colher cantos de pássaros no jardim,
e principalmente de lhe observar desfiando as notas
melódicas do bem-te-vi para montar lindas canções.


deus ficou pela metade!
antes de ser parcela,
foi inteiro,
ritmado,
sorria com todos os dentes,
costumava voar dentro de mim,
pousava no alto,
na áurea.
roxa, vermelha, azul
mudava o meu tom, adjetivo e predicado.
shh!
que silêncio bonito era o dele
às vezes eu pensava que meus ouvidos tinham calado
de tão mudo que ele se fazia,
mas quando eu começava a (des)compreendê-lo
ele legendava-se,
e traduzia-se
em mil faces e palavras.
tinha cheiro de incenso de alecrim
e gosto de falta,
mas não faltava,
antes ele era inteiro,
pudera fosse somente meu paladar
prevendo seu meio-futuro-meio-dividido.
como se tornou metade?
ninguém sabe!
talvez eu apenas tenha varrido a sua outra parte
pra fora de mim.


Frederico Brison.

CICATRIZ


nas quatro paredes marcadas de injúria,
nasceram as rezas do nosso amor;
no canto do quarto,
de onde veio o encanto do santo pecado,
encontrei morta a flor;
entrecortada, desprotegida,
condenada pelas tuas promessas que não foram cumpridas;
eu e a rosa desabrochamos pra ti nossas intimidades,
mas você era falta,
era jura,
era deus,
era o diabo,
era o cálice santificado,
que me transbordava da falta de voz;
ainda te temo meu anjo caído,
desce do morro, venha me ver,
aproveita a rua vazia,
vem pelos becos,
trás meu prazer.
vem com teu jeito de doce menino,
que por dentro oculta minha arranhadura,
a face rasgada, cicatrizes de amor,
já desça em alta temperatura,
me agrida, me fira, me mata, me viva,
dê uma história pro teu escritor.


Frederico Brison.

CULPADOS


ainda que noite,
por debaixo da sombra do mundo,
e por dentro dos fantasmas
que rumam o caminho
das minhas verdades,
e tocam cada canto
da minha áurea com seus dedos
imundos, sujos de detalhes e de promessas,
que grudam meus olhos de espera,
e depois os abrem para uma realidade
carnal, onde viver é sôfrego,
descomunal a tudo o que temos.
ainda que a noite nem seja tão noite,
e que o amanhecer já desperte por trás de nós,
peque!
não existe sentença pros pecados da noite,
os anjos não multam
o que Deus, dormindo, não vê.
a humanidade que transita a madrugada
não é arbitrada por suas escolhas,
o pecar torna-se santo,
as mentiras viram lembranças,
e todo o amor é visto como amor.
ainda que a noite já tenha acabado,
e o sol já esteja julgando os culpados,
peque!
caminhe na luz, me venha prover,
pois quem ama não liga pra nenhum pecado,
não liga pros olhos de quem queira ver.
e se porventura formos condenados,
apontados, sonegados, seja lá o que for,
que a sentença, a pena dos nossos pecados,
não seja viver sem o nosso amor.


Frederico Brison.

ESCADAS


enche de esperança
a boca vazia,
sedenta de vida.
transeunte dos lábios,
da língua sem gosto,
temperada pela punição
dos bagos roliços
com cheiro de flor.
desabrocha tuas verdades,
veredas sucumbidas,
põe tuas estrelas
no meu céu
e faz pender dele
tua chuva,
nublando-me
por dentro.
batiza e sela
meus lábios pagãos,
tornando-os crentes
de que prostrados a ti
nos levarão à glória.
vazio,
torno-me o grito
do mundo,
cheio,
sou apenas teu silêncio.
um calar que afoga,
sufoca e mata minha sede.


Frederico Brison.

PRAGA

sobre viver,
sobrevivi!
das agruras nocivas
ao corpo, que autopsiado
recebe o diagnóstico de vida,
exorta lástimas inanimadas
que sucinta maleficamente
a inolvidável sustentação da malícia
com que tomou-me no abraço.
tornei-me teu conjuntivo,
defenestrei-te parte por parte,
e vi do alto, outrem sarar tuas feridas quase verdadeiras.
e praguejei teu futuro com palavras difíceis
para que me ouvisse, mas não entendesse.
sorriu.
tenho certeza que não entendeu.


Frederico Brison.

FOI-SE


fez de mim a voz da noite,
quando seus braços ainda eram curtos
pra alcançar meu coração.
recordo-te do lado detrás destes nossos dias,
quando ainda haviam dias nossos,
e qualquer mentira fazia-se ausente
da mente que possuías.
tua chegada era primícia,
tudo o que era som tornava-se calado,
e teu grito na posse de mim,
era o silêncio rascante mais bem preservado.
tu era versículo proibido,
de vocábulo imundo,
segregado no batismo carnal
em que foi navalhado pela misericórdia
banal das minhas suplicações por ti.
era dono da vida que tinha,
cometia seus crimes no sigilo da sombra da lua,
eu era o seu maior delito,
roubava dos meus lábios tudo o que pudesse carregar,
tornava-me habitante do seu âmbito infinito,
um recôncavo descomunal e secular,
que guardava dentro de si um buraco vazio,
de onde vinha todo grito insensato,
que nas madrugadas clamavam
pela distração da falta que tinha.
era senhor da morte dos outros,
era a foice afiada que levava os últimos suspiros
daqueles que encantados rendiam-se em promessas
e juras que tinham eternidade curta.
era o passado de um presente atrofiado,
enfeitado com sorrisos que se fecham na ausência de olhos.
era tudo o que eu quis quando ainda éramos,
era tudo o que queriam aqueles que como eu, o tinham.
era um, pra gente demais.


Frederico Brison.

MUMIFICADO


nunca consegui deixar de ser este corpo retilíneo e fútil
destinado a ser epígrafe de si mesmo, ainda que nada fosse.
da janela pra fora,
existem multidões de cadáveres vivos e mortos,
todos destinados a serem comida do mundo,
a boca voraz que engole tudo o que deveria ter sido
e jamais pode ser.
os lábios ásperos e duros que engolem inclusive o que foi,
e num súbito segundo de descuido é mastigado
como se fosse fácil degustar a carne amarga,
que dissolve na língua os sentimentos
podres e insensatos que perdendo a vida, a ganham.
somos mãos dadas que nunca mais voltaram,
dentes que sorriram juntos,
e se desencontraram no meio desta coisa toda,
olhos fechados por mentiras e lágrimas,
somos ofego insuficiente que esvazia e seca pulmões.
não me condene por ser frio
e não senti-lo,
eu sou o que tornei-me quando ainda éramos,
sou a guerra que você venceu.
sou o morto mais vivo que alguém em vida conheceu.


Frederico Brison.

SETEMBRO


de um quase ponto final,
pingou no mundo,
menino dourado dos cachos morenos,
trouxe riso ao pranto
e cor ao negro.
fez veranear
vidas em eterno inverno.
acordou uma vez,
e ainda caído no sono da noite
manteve-se desperto
nos que o amam e acalentam.
palavreia teus contos inteligíveis
garoto de virgem,
e desata todos os ouvidos que já tinham ensurdecido.
cresce e salta pro voo, dos braços que mesmo abertos
jamais o deixarão partir.


Frederico Brison.

ODE AO LEITOR


cada palavra que gero no cruzo dos meus dedos
já nasce criminosa e sentenciada a viver perpetuamente
dentro dos olhos que as sugam pra dentro.
na madrugada em que os verbos são rasgados 
dos versos estimados que crio, morro.
é lastimável correr todos os becos imundos do mundo
enrolado no meio de um par de palmas fechadas,
úmido pela saliva do boca a boca em que sou transferido
pra outros suspiros de moças virgens e apaixonadas.

isto nem é Ode,
não sei regrar domesticamente o que sai de mim,
mas a intenção com que é feito tem grande valia,
definir-me entre poema, conto ou poesia
é condenar-me à forca de ser catalogado numa estante da
Travessa.

eu escrevo, só isso, prezado leitor.
não o faço pra ninguém que não seja eu,
e se todos me são, a culpa não é minha.
conheci milhares que juravam ter dentro de si as mesmas dores,
mas qual é a diferença entre uma e outra?
todas elas doem, algumas mais, ou menos, mas doem, afinal.

eu escrevo, só isso.
não pra que me reconheçam,
mas pra que eu possa me conhecer
ou reconhecer-me,
já que não tenho certeza se um dia eu soube quem era.
quero me ver de fora, estampado feito um fútil
na cara do próximo,
no sorriso, 
no ladrar inteligível do cão que me olha com desprezo.

é notável a incoerência que cansada de mim suicida-se
no meio das minhas parábolas íntimas sobre amores,
horrores, alegrias esperançadas e minhas palavras.
quem não se cansa de um escritor que mente verdade?
eu me canso de mim.
e sem a (in)coerência que já se sepultou
também me suicido,
pulo do vigésimo andar do meu prédio
e subo de elevador pra dormir o dia já amanhecido,
e assim são todas as noites em que eu escrevo.

porque escrever é morar na queda livre que vai em direção
pro infinito que é cada leitura,
é mudar constantemente de casa, de pálpebra,
pular de vista.
e eu escrevo, só isso.

Frederico Brison.