DEUS


Antes que pudesse ser amor,
fora qualquer outro sentimento além.
Isso se houver neste canto onde vivemos
algo que possa superá-lo,
e se houver a existência desse, ou de outro.
Jamais obtive coragem
para mostrar a nenhum outro ser
habitante do mundo,
as chagas que carrego junto a mim.
Minha alma é doente, é faltante.
É submissa aos martírios banais
de uma matéria sádica,
que não supre às necessidades
primordiais do espírito.
Ah, sempre fostes o único capaz
de livrar-me a alma das dores de sua doença,
distraías tão bem a minha carne
que ela não percebia quando a alma fugia
pra um mundo melhor.
Tu eras capaz de nos tornar um, correspondentes.
Nos dominava e fazia de nós santificados.
A trindade mais pura que pudesse haver.
Corpo, alma e espírito, santos.
Dentro de nós, curava-nos.
Afastava as mazelas.
E se porventura foste mais fundo,
na cavidade obscura que era a ponte entre um estado e outro,
tornava-se soberano.
Tua onipotência me enchia de graças,
expulsava o diabo que fazia-me hospedeiro,
libertava meus demônios,
cicatrizava meus estigmas.
Dentro de mim ergui altares e louvores a ti,
enfeitei-me com velas para que não houvesse
lado interior que não conhecesse,
rezei teu terço de olhos fechados,
boca entreaberta, e suspiro ofegante,
e mais rápido que qualquer outra divindade,
tu me atendestes, estendendo o teu corpo por cima do meu.
Tornaste-te, então, a minha religião.
O meu homem.
O meu deus.


Frederico Brison.

ALMA PENADA


não conheces o som do sopro da alma,
muda o silêncio versando emudecida,
salta do corpo trajando farrapos,
se oferece em agalma pros deuses da vida.

cai no vazio da boca pra fora,
penhora a matéria em troca de luz,
sustenta imperícia em sua alforria,
calada, cansada, pregada na cruz.

prematura transparência imaculada,
transitante de rumo perdido,
volta pro corpo, alma penada,
volta quietinha, feito bandido.

pula-me os muros do corpo gelado,
que perdeu sua crença de ser infinito,
e no meio das flores sendo velado,
me tire da morte, solte seu grito.


Frederico Brison.

MADRUGADA DOS MORTOS


da janela
avisto
o prenúncio
da tua chegada.
alma clara,
habitante
da sombra
da rua.
cópula
dos segredos
de dois
amantes condenados
pelo desejo carnal.
simbiose nauseante,
que martiriza
o sagrado sacrifício,
de um que rala
os joelhos no chão
e apoia as palmas
nas coxas
do outro,
que lança fora
a vocalização
do seu prazer.
quantas vezes
é possível
morrer uma vida?
sepulta-me
entre as pernas,
na cova
que cavastes tão bem.
me deixe flores,
e jamais esqueça
de em morte
manter-me regado,
como fez em vida.
desejo estar
pra eternidade,
úmido
pela santificação
da sua erótica humanidade.


Frederico Brison.

RECORTE


O amor quando chega tro
Veja a menina sentada, des
Preocupada com a dor e com a vi
Dá pra ser certo no meio de tanta lou
Cura as feridas que sangram e machu
Caminhando, deixemos pra trás to
Dos os amores que eu a
Creditei em ti minhas convicções e em tro
Cá estou perdido novamente, lasti
Mando que fiques e tu vais em
Bora pro Sul? Começar de no
Volta pra mim, é só o que peço, por
Favor.


Frederico Brison.

AFOGADO


te prendi dentro das minhas olheiras,
lacrimejei e te afoguei.
não arrependi,
o motivo das lágrimas era você.
meus olhos deitaram em ti,
e morreram pra realidade.
nascem de novo, todos os dias.
é involuntário, eles se abrem como se fecham,
cansados, hora do mundo, hora do sonho.
de uma ilusão paralela que fere minhas pálpebras.
atravesso mil desejos
que escorrem pelo rosto quando pisco,
insisto nisso, nasci pra morrer a cada sono,
e renascer a cada súbita vontade que despenca em mim.
vontade de te sonhar, de olhos abertos dessa vez.


Frederico Brison.

SEMIDEUS


deus veio pela metade!
você chegou meio manco,
meio ferido,
meio bandido,
meio o que costuma ser.
tua mania divina
de fazer-me ventricular anormalmente,
manualmente,
quase que bombeando a dedos
o nosso meio coração.
e tuas unhas lascadas arranhavam-me as artérias
e faziam cócegas suaves em cada célula,
que percorriam-me em gargalhadas.
gostava do jeito que você tirava de mim as vírgulas,
e da forma artesanal que fazia delas lindos espirais
abstratos.]
de quando íamos colher cantos de pássaros no jardim,
e principalmente de lhe observar desfiando as notas
melódicas do bem-te-vi para montar lindas canções.


deus ficou pela metade!
antes de ser parcela,
foi inteiro,
ritmado,
sorria com todos os dentes,
costumava voar dentro de mim,
pousava no alto,
na áurea.
roxa, vermelha, azul
mudava o meu tom, adjetivo e predicado.
shh!
que silêncio bonito era o dele
às vezes eu pensava que meus ouvidos tinham calado
de tão mudo que ele se fazia,
mas quando eu começava a (des)compreendê-lo
ele legendava-se,
e traduzia-se
em mil faces e palavras.
tinha cheiro de incenso de alecrim
e gosto de falta,
mas não faltava,
antes ele era inteiro,
pudera fosse somente meu paladar
prevendo seu meio-futuro-meio-dividido.
como se tornou metade?
ninguém sabe!
talvez eu apenas tenha varrido a sua outra parte
pra fora de mim.


Frederico Brison.

CICATRIZ


nas quatro paredes marcadas de injúria,
nasceram as rezas do nosso amor;
no canto do quarto,
de onde veio o encanto do santo pecado,
encontrei morta a flor;
entrecortada, desprotegida,
condenada pelas tuas promessas que não foram cumpridas;
eu e a rosa desabrochamos pra ti nossas intimidades,
mas você era falta,
era jura,
era deus,
era o diabo,
era o cálice santificado,
que me transbordava da falta de voz;
ainda te temo meu anjo caído,
desce do morro, venha me ver,
aproveita a rua vazia,
vem pelos becos,
trás meu prazer.
vem com teu jeito de doce menino,
que por dentro oculta minha arranhadura,
a face rasgada, cicatrizes de amor,
já desça em alta temperatura,
me agrida, me fira, me mata, me viva,
dê uma história pro teu escritor.


Frederico Brison.

CULPADOS


ainda que noite,
por debaixo da sombra do mundo,
e por dentro dos fantasmas
que rumam o caminho
das minhas verdades,
e tocam cada canto
da minha áurea com seus dedos
imundos, sujos de detalhes e de promessas,
que grudam meus olhos de espera,
e depois os abrem para uma realidade
carnal, onde viver é sôfrego,
descomunal a tudo o que temos.
ainda que a noite nem seja tão noite,
e que o amanhecer já desperte por trás de nós,
peque!
não existe sentença pros pecados da noite,
os anjos não multam
o que Deus, dormindo, não vê.
a humanidade que transita a madrugada
não é arbitrada por suas escolhas,
o pecar torna-se santo,
as mentiras viram lembranças,
e todo o amor é visto como amor.
ainda que a noite já tenha acabado,
e o sol já esteja julgando os culpados,
peque!
caminhe na luz, me venha prover,
pois quem ama não liga pra nenhum pecado,
não liga pros olhos de quem queira ver.
e se porventura formos condenados,
apontados, sonegados, seja lá o que for,
que a sentença, a pena dos nossos pecados,
não seja viver sem o nosso amor.


Frederico Brison.

ESCADAS


enche de esperança
a boca vazia,
sedenta de vida.
transeunte dos lábios,
da língua sem gosto,
temperada pela punição
dos bagos roliços
com cheiro de flor.
desabrocha tuas verdades,
veredas sucumbidas,
põe tuas estrelas
no meu céu
e faz pender dele
tua chuva,
nublando-me
por dentro.
batiza e sela
meus lábios pagãos,
tornando-os crentes
de que prostrados a ti
nos levarão à glória.
vazio,
torno-me o grito
do mundo,
cheio,
sou apenas teu silêncio.
um calar que afoga,
sufoca e mata minha sede.


Frederico Brison.

PRAGA

sobre viver,
sobrevivi!
das agruras nocivas
ao corpo, que autopsiado
recebe o diagnóstico de vida,
exorta lástimas inanimadas
que sucinta maleficamente
a inolvidável sustentação da malícia
com que tomou-me no abraço.
tornei-me teu conjuntivo,
defenestrei-te parte por parte,
e vi do alto, outrem sarar tuas feridas quase verdadeiras.
e praguejei teu futuro com palavras difíceis
para que me ouvisse, mas não entendesse.
sorriu.
tenho certeza que não entendeu.


Frederico Brison.

FOI-SE


fez de mim a voz da noite,
quando seus braços ainda eram curtos
pra alcançar meu coração.
recordo-te do lado detrás destes nossos dias,
quando ainda haviam dias nossos,
e qualquer mentira fazia-se ausente
da mente que possuías.
tua chegada era primícia,
tudo o que era som tornava-se calado,
e teu grito na posse de mim,
era o silêncio rascante mais bem preservado.
tu era versículo proibido,
de vocábulo imundo,
segregado no batismo carnal
em que foi navalhado pela misericórdia
banal das minhas suplicações por ti.
era dono da vida que tinha,
cometia seus crimes no sigilo da sombra da lua,
eu era o seu maior delito,
roubava dos meus lábios tudo o que pudesse carregar,
tornava-me habitante do seu âmbito infinito,
um recôncavo descomunal e secular,
que guardava dentro de si um buraco vazio,
de onde vinha todo grito insensato,
que nas madrugadas clamavam
pela distração da falta que tinha.
era senhor da morte dos outros,
era a foice afiada que levava os últimos suspiros
daqueles que encantados rendiam-se em promessas
e juras que tinham eternidade curta.
era o passado de um presente atrofiado,
enfeitado com sorrisos que se fecham na ausência de olhos.
era tudo o que eu quis quando ainda éramos,
era tudo o que queriam aqueles que como eu, o tinham.
era um, pra gente demais.


Frederico Brison.

MUMIFICADO


nunca consegui deixar de ser este corpo retilíneo e fútil
destinado a ser epígrafe de si mesmo, ainda que nada fosse.
da janela pra fora,
existem multidões de cadáveres vivos e mortos,
todos destinados a serem comida do mundo,
a boca voraz que engole tudo o que deveria ter sido
e jamais pode ser.
os lábios ásperos e duros que engolem inclusive o que foi,
e num súbito segundo de descuido é mastigado
como se fosse fácil degustar a carne amarga,
que dissolve na língua os sentimentos
podres e insensatos que perdendo a vida, a ganham.
somos mãos dadas que nunca mais voltaram,
dentes que sorriram juntos,
e se desencontraram no meio desta coisa toda,
olhos fechados por mentiras e lágrimas,
somos ofego insuficiente que esvazia e seca pulmões.
não me condene por ser frio
e não senti-lo,
eu sou o que tornei-me quando ainda éramos,
sou a guerra que você venceu.
sou o morto mais vivo que alguém em vida conheceu.


Frederico Brison.

SETEMBRO


de um quase ponto final,
pingou no mundo,
menino dourado dos cachos morenos,
trouxe riso ao pranto
e cor ao negro.
fez veranear
vidas em eterno inverno.
acordou uma vez,
e ainda caído no sono da noite
manteve-se desperto
nos que o amam e acalentam.
palavreia teus contos inteligíveis
garoto de virgem,
e desata todos os ouvidos que já tinham ensurdecido.
cresce e salta pro voo, dos braços que mesmo abertos
jamais o deixarão partir.


Frederico Brison.

ODE AO LEITOR


cada palavra que gero no cruzo dos meus dedos
já nasce criminosa e sentenciada a viver perpetuamente
dentro dos olhos que as sugam pra dentro.
na madrugada em que os verbos são rasgados 
dos versos estimados que crio, morro.
é lastimável correr todos os becos imundos do mundo
enrolado no meio de um par de palmas fechadas,
úmido pela saliva do boca a boca em que sou transferido
pra outros suspiros de moças virgens e apaixonadas.

isto nem é Ode,
não sei regrar domesticamente o que sai de mim,
mas a intenção com que é feito tem grande valia,
definir-me entre poema, conto ou poesia
é condenar-me à forca de ser catalogado numa estante da
Travessa.

eu escrevo, só isso, prezado leitor.
não o faço pra ninguém que não seja eu,
e se todos me são, a culpa não é minha.
conheci milhares que juravam ter dentro de si as mesmas dores,
mas qual é a diferença entre uma e outra?
todas elas doem, algumas mais, ou menos, mas doem, afinal.

eu escrevo, só isso.
não pra que me reconheçam,
mas pra que eu possa me conhecer
ou reconhecer-me,
já que não tenho certeza se um dia eu soube quem era.
quero me ver de fora, estampado feito um fútil
na cara do próximo,
no sorriso, 
no ladrar inteligível do cão que me olha com desprezo.

é notável a incoerência que cansada de mim suicida-se
no meio das minhas parábolas íntimas sobre amores,
horrores, alegrias esperançadas e minhas palavras.
quem não se cansa de um escritor que mente verdade?
eu me canso de mim.
e sem a (in)coerência que já se sepultou
também me suicido,
pulo do vigésimo andar do meu prédio
e subo de elevador pra dormir o dia já amanhecido,
e assim são todas as noites em que eu escrevo.

porque escrever é morar na queda livre que vai em direção
pro infinito que é cada leitura,
é mudar constantemente de casa, de pálpebra,
pular de vista.
e eu escrevo, só isso.

Frederico Brison.